Os grous?



As viagens separam-nos do passado.
Se apenas viajássemos como grous,
sem reconhecer as nações debaixo da quilha do nosso esterno,
se não trocássemos os idiomas e as unhas
com os habitantes das novas geografias,
seríamos nós. Porque o idioma
é fechado e insondável em cada criatura,
porque cada nação é o berço de uma língua
e os meus poemas noutra língua não são meus.
Quando viajamos no mundo não sabemos quem fomos.

Fiama Hasse Pais Brandão
(in: Cenas Vivas, 2000)







Journey to the Interior

.
                  There are similarities
                  I notice: that the hills
                  which the eyes make flat as a wall, welded
                  together, open as I move
                  to let me through; become
                  endless as prairies; that the trees
                  grow spindly, have their roots
                  often in swamps; that this is a poor country;
                  that a cliff is not known
                  as rough except by hand, and is
                  therefore inaccessible. Mostly
                  that travel is not the easy going
                
                  from point to point, a dotted
                  line on a map, location
                  plotted on a square surface
                  but that I move surrounded by a tangle
                  of branches, a net of air and alternate
                  light and dark, at all times;
                  that there are no destinations apart from this.
                 
                  There are differences
                  of course: the lack of reliable charts;
                  more important, the distraction of small details:
                  your shoe among the brambles under the chair
                  where it shouldn't be; lucent
                  white mushrooms and a paring knife
                  on the kitchen table; a sentence
                  crossing my path, sodden as a fallen log
                  I’m sure I passed yesterday
                                         
                  (have I been
                  walking in circles again?)
                 
                  but mostly the danger:
                  many have been here, but only
                  some have returned safely.
                 
                  A compass is useless; also
                  trying to take directions
                  from the movements of the sun,
                  which are erratic;
                  and words here are as pointless
                  as calling in a vacant wilderness.
                                         
                  Whatever I do I must
                  keep my head. I know
                  it is easier for me to lose my way
                  forever here, than in other landscapes


Margaret Atwood








 








Paisagens


Paisagens tranquilas ou desoladas.

Paisagens da estrada da vida mais do que da superfície da Terra.
Paisagens do Tempo que se escoa lentamente, quase imóvel e às vezes como que de marcha atrás.
Paisagens de retalhos, de nervos lacerados, de 'saudades'.
Paisagens para tapar as feridas, o aço, o estoiro, o mal, a época, a corda no pescoço, a mobilização.
Paisagens para abolir os gritos.
Paisagens como um lençol puxado até a cabeça.

Henri Michaux
(in Antologia,
Trad. Margarida Vale do Gato, Relógio d'Água, Lisboa, 1999)

Todo estado de alma é uma paisagem...


1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.

2. Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E – mesmo que não se queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos estão tristes.
3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo – num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva – e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma – é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser – não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem – que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

Fernando Pessoa
(in Fernando Pessoa. Obra Poética, Editora José Aguilar Ltda. Rio de Janeiro. 1960)